Prefácio a "Não quero ser mãe", de Laura Alves.Por Joana Amaral Dias
No último Natal, no top dos brinquedos, continuavam as bonecas e seus acessórios de cuidado e embelezamento, para as meninas. Automóveis, puzzles e instrumentos como microscópios, para os meninos. Brincar desenvolve competências que visam, nomeadamente, a aprendizagem de papeis sociais. Os brinquedos de encaixes estimulam algumas faculdades mentais, enquanto uma bola favorece aptidões motoras. Para as crianças do sexo masculino ainda são seleccionados brinquedos que desenvolvem capacidades cognitivas e de exploração do mundo. As crianças do sexo feminino continuam a ser estimuladas para a maternidade, domesticidade e adorno físico. Alguns acharão que esse top prova que as mulheres estão destinadas à procriação e maternidade, ao natural. E que os homens são inatamente orientados para a sociedade/cultura. Contudo, muito antes das crianças manifestarem preferências, a sociedade condiciona-as. Os pais seleccionam o enxoval em função do sexo do feto. Só na adolescência aparecem os caracteres sexuais secundários. Até lá, apenas sinais como o vestuário permitem a demarcação. E parece ser imperativo diferenciar feminino/masculino desde que o nascimento. A essa distinção subjazem diferentes papeis ou expectativas: um quarto em tons suaves para as meninas, porque elas devem ser suaves. Uma decoração em tons garridos para os rapazes, porque eles querem-se garridos. Antes de falar, as meninas já viram na omnipresente publicidade que as outras meninas escolhem bonecas. As preferências são ensinadas. Muito antes das crianças elegerem rosa ou azul, bonecas ou carrinhos, domesticidade ou aventura, a sociedade escolhe por elas. No século XXI, as meninas ainda são, como Simone de Beauvoir denunciou há 50 anos, precocemente formatadas para serem cuidadoras. Na infância é-lhes sistematicamente dito, explícita ou implicitamente, que nasceram para dar à luz. A socialização propagandeia recorrentemente as “maravilhas e esplendor da maternidade”. E raramente foca o outro lado do “extraordinário privilégio”, como os problemas que a gravidez e parto podem acarretar ou as dificuldades sócio-profissionais que podem surgir. Especialmente em sociedades que têm caminho a percorrer relativamente à igualdade, como ainda são, apesar de tudo, vários países, mesmo os desenvolvidos. E os meninos são privados das suas capacidades de cuidadores. Aliás, se uma menina optar por brinquedos considerados arrapazados, os pais ficam preocupados. Se um menino preferir brincar com bonecas, maquilhagem a fingir ou carrinhos para bebés, os pais entram em pânico. “Maria-rapaz” pode ser insultuoso. Mas “mariquinhas” é bem pior. Não obstante os avanços, os papeis tradicionais atribuídos a homens e mulheres ainda são pujantes porque as diferenças foram ampliadas. Ao longo de séculos e séculos, às mulheres foi negada a sexualidade e o controlo sobre o seu corpo. O corpo e temas satélite (género ou sexualidade), percepcionados como naturais são, ao invés, construções sociais que sustentam ideologias e relações de poder. É assim desde a antiguidade e do judaico-cristianismo, matrizes culturais europeias, que depreciaram o corpo, opondo-o ao espírito e à racionalidade. Assim é, por exemplo, no diálogo platónico Fedro. O início da especulação filosófica ficou marcado pelo discurso aristotélico que afirmava que a mulher era o receptáculo do sémen masculino, que as mulheres eram “homens deficientes”, ou imbecilittas sexus, no dizer de São Tomás de Aquino, já no século XIII. Noção que Freud reformularia sob a fórmula da “inveja fálica”. Ou seja, a filosofia discriminou através de um argumento biológico: o corpo da mulher era reprodutor, propriedade do homem, confinando as mulheres à esfera doméstica e atrofiando a sua cidadania. Foi o “querer saber” de Eva e a carne que suscitaram o pecado original e o sofrimento, obstaculizando a salvação. Mas na bíblia “o Verbo se fez carne” e o amor erótico é tema. Ou seja, o cristianismo medieval intensificou a negatividade do corpo. Caro Cardo Salutis (A carne é o gonzo da salvação) na expressão de Tertuliano. Depois de Santo Agostinho, chegou-se à Idade Média considerado o corpo como a origem de todo o mal, merecedor de castigo. Nomeadamente, trabalhando. Mas quem trabalhava? A plebe que, durante o feudalismo, era propriedade do nobre. Tanto que se exercia a prática da primeira noite: o senhor feudal desflorava as mulheres dos servos da gleba. A Inquisição vibrou com o cheiro de carne humana na fogueira e com os gritos lancinantes de quem era fustigado. A caça às bruxas, durante mais de três séculos, matou milhões de mulheres. Os nomes dos instrumentos de tortura são ilustrativos: A pêra oral, rectal e vaginal ou O Destroçador de Seios. Habitualmente, as mulheres eram acusadas de terem sexo ou de gostar (o que só poderia resultar duma ligação ao diabo) e de fazerem anticoncepcionais. Estima-se que 85% da vítimas da Inquisição foram mulheres. Mas, através de inúmeros filmes ou outras obras, fica-se com a sensação que só mataram homens, à excepção de Joana D’Arc. O aparecimento da ciência moderna reforçou a ideia do corpo como indesejável face à razão. A máxima de Descartes, Penso, logo existo, é a negação do corpo, a sua dispensa. Mas existiram tentativas de o libertar. No romantismo, ele pulsa com desejo e erotismo. E em pleno século XIX irrompem as grandes rupturas que visavam o seu reconhecimento como a totalidade do humano. Através de Darwin e a evolução, de Marx e Engels e a análise do corpo explorado e, sobretudo, de Nietzsche, que defendeu que somos corpo e nada mais. Assim, no final do séc. XIX, o domínio do corpo estava em causa. Mas não se desistiu. E o controlo passou a ser através das instituições, como demonstrou Foucault. O cristianismo, temendo a força da carne, trocava prazer por salvação. Já a política moderna envolveu a carne em múltiplos contractos. É evidente que a medicina e as “pessoas que vieram ocupar-se da vida dos outros, inspectores, assistentes sociais, psicólogos”, desempenharam um papel fundamental nesse novo controlo. Ou seja, do século XVII ao início do século XX, contra o corpo como melhor representação da alma (Wittgenstein), contra as tentativas de “reabilitação” do corpo na literatura, filosofia e ciência, o controlo meticuloso originou terríveis regimes disciplinares em escolas, hospitais, asilos, prisões, casernas ou fábricas, atingindo o cume na “biomedicina” nazi. As mulheres deveriam ter uma sexualidade passiva. No século XIX, ainda se ensinava às raparigas que sexo é pecado e que deviam casar virgens, para depois disponibilizarem os seus corpos ao marido e à fecundação. Em 1877, por exemplo, a inglesa Annie Besant foi presa por publicar um livro sobre controlo da população. Em 1939, a médica francesa Madeleine Pelletier, foi internada num hospital psiquiátrico, por defender o direito ao aborto. Contra a sexualidade feminina ao serviço da reprodução e do prazer como exclusivo do macho, insurgiram-se as feministas da década de 60 do século XX. Até à geração do pós-guerra, a maternidade foi encarada como o destino de todas as mulheres, afastando-as do conhecimento e do poder. Só no final do século XX, com a contracepção e legalização da interrupção voluntária da gravidez em muitos países, as mulheres puderam decidir ter ou não filhos e viver a sua sexualidade. Enfim, privilégios que a maioria dos homens gozou quase sempre. Até lá, o aborto foi uma prática comum mas clandestina, sujeitando as mulheres a nova série de torturas. Depois da década de sessenta do século XX, percebeu-se que o controlo através da estimulação pode ser tão eficiente (ou mais) como o controlo pela repressão. Hoje, todos são livres de expor os corpos, desde que os emagreçam ou estilizem. E para isso- como às vezes para simplesmente continuarmos vivos – é necessária tecnologia. Isto é, agora entrega-se a carne à técnica, desde que esta não conflitue com o cristianismo. Os resultados são implacáveis. O corpo tornou-se no mais desejável objecto de consumo, voluntariando-se para ser inspeccionado e violado: genética, body building, body piercing, cirurgia estética. Mas as politicas feministas exploram o potencial emancipador das tecnociências que permitiram o sexo sem reprodução e agora permitem a reprodução sem sexo, nomeadamente através da inseminação artificial. É a tecnologia, a mesma que serve para controlar, que possibilita às mulheres romper com o natural. É por isso que Donna Haraway, afirma que prefere ser um ciborg do que uma deusa da feminilidade emancipada. Prefere ser um pós–humano do que a revelação duma suposta essência da mulher que só serve para perpetuar fábulas. Portanto, contesta-se o mito da mulher sacrificial, programada para bebés, gerando debates a altas temperaturas, como todos os assuntos relativos ao sistema reprodutor feminino. Inclusivamente o aborto, que muitas vezes tem subentendido o que significa ser mãe. Aliás, se o instinto maternal existisse não ocorreriam infanticídios e abandonos por mães. No entanto, verificam-se, quer em sociedades primitivas, quer nas sociedades contemporâneas. Já os rituais de reconhecimento dos bebés, como o baptizado, são banais. Em diferentes locais, ao longo dos tempos, a descendência só é aceite depois de uma cerimónia, sugerindo que o cuidar não é uma consequência imediata do parir. Por outro lado, os primatas do sexo masculino dispõem-se, em determinadas circunstâncias, a cuidar das suas crias ou até de crias alheias. Mesmo que a maternidade seja certa e a parentalidade não. Ainda que a selecção natural tenha favorecido a capacidade de criar bebés das mães. Em Não quero ser mãe, Laura Alves problematiza diferentes testemunhos de mulheres que não querem filhos. Algumas não gostam de crianças. As mulheres entrevistadas para este livro afastam-se dos valores da maternidade alimentados pelos sectores mais conservadores, mas sem rejeitar a maternidade, sem condenar quem opta por ela. Mas o contrário não é verdade. Há quem não prescinda de censurar mulheres com opções diferentes, por vezes de modo preconceituoso e até rasteiro, ainda que raramente os homens sejam reprovados por não gostarem de crianças, quanto mais por não quererem filhos. Estas mulheres podem escolher ter ou não filhos e quando os ter, gozando de condições de maternidade muito superiores às que foram oferecidas às suas avós. É-lhes fácil não ter um bebé, através da contracepção. E é-lhes fácil ter um bebé, considerando os avanços da medicina e algumas conquistas sociais que, sobretudo no ocidente, tornaram essa experiência menos arriscada, inclusivamente para o recém-nascido. Podendo determinar a altura e beneficiando de melhores condições, seria de esperar que desejassem mais filhos, se tivessem o tal instinto. Mas as mulheres portuguesas, italianas ou alemãs não querem mais filhos do que as suas mães. O que simplifica a gravidez e maternidade não leva ao aumento da natalidade. E essa constatação, as vozes das mulheres entrevistadas por Laura Alves, como todas as que não querem filhos nas regiões privilegiadas do globo, desafiam as concepções tradicionais e estereotipadas das mulheres. Mostram, contra todas as lendas – desde a religião à psicanálise –que os supostos instintos/”relógios biológicos” não são uma inevitabilidade (como é apanágio de instintos ou bombas tique-taque). São uma opção. Se as teorias da evolução supõem que acesso a mais recursos significa mais crianças, será que o evolucionismo está errado? Os números mostram que melhores condições e mais controlo sobre a reprodução levam a menos filhos. E que se as mulheres tiverem que escolher entre o seu bem-estar e ser mães, muitas escolherão o primeiro. Mas essas mulheres lutam por sobreviver e viver melhor. As opções das mulheres que não querem filhos estão contra mitos. Mas não estão contra a evolução, nem sequer contra a continuação da espécie. Essas opções podem até corresponder a uma era menos decadente. A uma época de maior diversidade, regra fundamental da evolução. E, por conseguinte, mais capaz de sobreviver. Afinal, a técnica prevê possibilitar a todos, mulheres e homens, jovens e idosos, a capacidade de gerar uma criança. Parece estar para breve.